O Direito Imobiliário Brasileiro diante de Transações Transnacionais Inéditas.
A transformação digital tem alcançado o mercado imobiliário com intensidade crescente, revelando um cenário de inovação que desafia os modelos tradicionais de compra e venda de bens imóveis. A convergência entre tecnologia, ativos digitais e práticas jurídicas inaugura uma nova era, marcada pela descentralização, automação e eficiência das transações patrimoniais.
No centro dessa revolução está a tokenização, processo pelo qual ativos reais como imóveis são convertidos em representações digitais negociáveis por meio da tecnologia blockchain. Essa prática permite que propriedades sejam fracionadas, registradas e comercializadas com segurança, transparência e rastreabilidade, eliminando etapas burocráticas e intermediários convencionais.
A tokenização não apenas simplifica a operação imobiliária, mas também amplia o acesso ao mercado. Por meio da emissão de tokens, é possível adquirir frações de imóveis, viabilizando modelos de multipropriedade com liquidez e flexibilidade. Essa inovação democratiza o investimento imobiliário, antes restrito a grandes capitalistas, e abre espaço para novos perfis de investidores.
No entanto, a ausência de regulamentação específica sobre tokenização no ordenamento jurídico brasileiro impõe desafios relevantes. A Lei nº 14.478/2022, conhecida como o Marco Legal dos Cripto ativos, embora tenha instituído diretrizes para ativos digitais e prestadores de serviços, não trata diretamente da representação digital de bens reais. Essa lacuna normativa gera insegurança jurídica quanto à validade, eficácia e publicidade dos tokens imobiliários.
A questão se agrava diante da estrutura registral brasileira, que confere eficácia plena à propriedade apenas por meio do registro público. Os tokens, por mais sofisticados que sejam, ainda não possuem equivalência jurídica com os títulos formais de domínio, o que limita sua utilização como instrumento de transferência patrimonial com efeitos reais.
Outro ponto sensível diz respeito à tributação. A Receita Federal ainda não dispõe de diretrizes claras sobre como declarar, tributar ou reconhecer juridicamente os tokens imobiliários. A ausência de parâmetros fiscais específicos pode gerar riscos de autuação, divergências interpretativas e insegurança para os agentes envolvidos na operação.
Diante desse cenário, torna-se imperativo o diálogo institucional entre os diversos atores do sistema jurídico: legisladores, registradores, notários, reguladores, juristas e tecnólogos. A interoperabilidade entre sistemas digitais e cartórios é essencial para que a tokenização seja reconhecida como meio legítimo de formalização patrimonial.
A experiência internacional oferece referências valiosas. Nos Estados Unidos, cerca de 33% dos pequenos negócios imobiliários já aceitam criptomoedas como meio de pagamento. Portugal e Emirados Árabes Unidos avançam com modelos híbridos, que conciliam inovação tecnológica com segurança jurídica, inclusive com reconhecimento de registros em blockchain como prova documental.
A perspectiva de utilização de NFTs (tokens não fungíveis) como contratos inteligentes para aquisição de imóveis é uma tendência que se desenha no horizonte. Esses instrumentos permitem a execução automática de cláusulas contratuais, com marca temporal e rastreabilidade, oferecendo agilidade e segurança às transações.
No Brasil, a compra de imóveis via NFTs ainda não é realidade jurídica consolidada. Contudo, operações recentes envolvendo investidores estrangeiros demonstram que o mercado está se adaptando. A conversão de criptomoedas em moeda fiduciária, como estratégia de liquidação, tem sido utilizada para mitigar riscos e garantir conformidade com as exigências legais.
Recentemente, um investidor estrangeiro comprou um imóvel no Brasil usando cripto ativos. A transação foi feita por meio de uma plataforma digital que tokenizou ativos, automatizou contratos, viabilizou pagamentos em moeda estável e converteu os valores com segurança e rastreabilidade. O sistema também agilizou a escrituração e o cumprimento das obrigações documentais, mostrando o potencial da tecnologia no setor imobiliário nacional.
A conversão fiduciária funciona como uma ponte de confiança entre o universo digital e o sistema jurídico tradicional. Ao transformar cripto ativos em reais, viabiliza o pagamento ao vendedor, o recolhimento de tributos e o cumprimento das obrigações contratuais, sem comprometer a inovação tecnológica da operação.
O impacto dessa nova lógica no mercado imobiliário tradicional é profundo. A automação dos processos, a redução de custos, a eliminação de intermediários e a ampliação do acesso ao investimento imobiliário representam uma ruptura com os modelos convencionais, exigindo adaptação dos profissionais e das instituições envolvidas.
A intermediação digital, por sua vez, exige regulamentação específica. A atuação de plataformas tecnológicas e agentes de custódia deve observar princípios de transparência, responsabilidade e conformidade legal, garantindo segurança às partes e integridade às operações.
A Resolução COFECI nº 1.551/2025 institui o Sistema de Transações Imobiliárias Digitais (STID), regulando plataformas digitais e agentes de custódia. Contudo, o Fórum Nacional de Desenvolvimento Imobiliário (FNDI) publicou nota técnica alertando para riscos relevantes, como a extrapolação de competência regulatória por parte do COFECI, a insegurança jurídica na representação de direitos reais por meio de tokens e os potenciais impactos negativos sobre o crédito imobiliário e os mecanismos de prevenção a ilícitos. Tais advertências reforçam a necessidade de cautela e de diálogo interinstitucional para que a inovação não comprometa os pilares da segurança jurídica e da legalidade registral.
Apesar dos avanços, a resolução não altera o regime jurídico da propriedade imobiliária, que continua dependente do registro público. A nota técnica publicada por representantes do registro de imóveis reforça a necessidade de compatibilização entre inovação tecnológica e segurança jurídica, especialmente no que diz respeito à publicidade, autenticidade e eficácia dos atos translativos de domínio.
Portanto, a compra de imóveis com cripto ativos representa um salto tecnológico no Direito Imobiliário brasileiro. A tokenização, os contratos inteligentes e a intermediação digital são instrumentos poderosos, mas ainda carecem de respaldo normativo robusto. O futuro exige diálogo, regulamentação e visão estratégica para que a inovação se consolide com segurança e eficácia.