Reflexões a partir de uma história real
A justiça penal, em sua essência, deve ser instrumento de proteção dos direitos fundamentais e da dignidade humana. No entanto, quando falha, pode se tornar agente de dor irreparável. O caso de Damaris Vitória Kremer da Rosa, jovem gaúcha presa preventivamente por quase seis anos e absolvida dois meses antes de sua morte por câncer, representa um marco doloroso que exige reflexão profunda sobre os limites e responsabilidades do sistema de justiça criminal.
Damaris foi presa em 2019, aos 20 anos, acusada de envolvimento em um homicídio. A acusação baseava-se em elementos frágeis, sem provas materiais que sustentassem sua participação direta no crime. Durante o processo, permaneceu encarcerada preventivamente, mesmo diante de sucessivos pedidos de liberdade e alertas sobre seu estado de saúde. A prisão preventiva, que deveria ser medida excepcional, tornou-se punição antecipada.
Ao longo dos anos, Damaris apresentou sintomas graves, dores intensas, sangramentos, perda de peso que indicavam um quadro clínico preocupante. A defesa apresentou documentos médicos, receituários e relatos consistentes, mas os pedidos foram indeferidos sob alegação de ausência de laudos formais. A escuta institucional falhou, e o sofrimento físico foi ignorado.
Em março de 2025, Damaris foi diagnosticada com neoplasia maligna do colo do útero. A prisão foi convertida em domiciliar, com uso de tornozeleira eletrônica. Mesmo debilitada, ela passou a realizar exames e tratamentos sob vigilância. Em agosto de 2025, foi absolvida por falta de provas. Em outubro de 2025, faleceu. A justiça chegou, mas tarde demais.
A proposta aqui não é atribuir culpa individual, mas sim promover uma análise sistêmica e educativa sobre os fatores que contribuíram para esse desfecho. O erro judicial, neste contexto, não se resume à condenação indevida, mas à manutenção de uma prisão injusta, à negligência institucional e à violação da dignidade humana.
O sistema de justiça criminal é estruturado sobre uma atividade essencialmente humana, permeada por limites cognitivos, condicionamentos sociais e variáveis subjetivas. Por consequência, trata-se de um sistema inevitavelmente exposto a falhas, distorções e equívocos. Reconhecer essa vulnerabilidade é o primeiro passo para construir mecanismos de prevenção e reparação.
Soma-se a essa realidade o fato de que os juízes, no exercício da jurisdição penal, precisam decidir em um cenário de inevitável incerteza fática. A produção de provas é limitada por circunstâncias práticas, e a “verdade real” dos fatos nem sempre é acessível. Por isso, as garantias processuais devem ser robustas e respeitadas com rigor.
A presunção de inocência, prevista no art. 5º, inciso LVII da Constituição Federal, é um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Ninguém deve ser tratado como culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. No caso de Damaris, esse princípio foi relativizado, e sua liberdade foi cerceada por quase seis anos sem condenação.
A prisão preventiva, embora prevista no ordenamento jurídico, deve ser aplicada com cautela e fundamentação concreta. A banalização dessa medida compromete o equilíbrio do processo penal e expõe o indivíduo a riscos desproporcionais. Damaris foi privada de liberdade por tempo superior ao que cumpriria se condenada.
Outro ponto crítico é a desigualdade no acesso à defesa. Pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica dependem da defensoria pública, que enfrenta sobrecarga e escassez de recursos. Isso compromete o direito à ampla defesa e ao contraditório, pilares do devido processo legal.
A negligência com a saúde das pessoas privadas de liberdade representa grave violação de direitos humanos. O Estado, ao assumir a custódia de um indivíduo, torna-se responsável por sua integridade física e mental. A demora no diagnóstico e no tratamento de Damaris é um exemplo doloroso dessa omissão.
A cultura punitivista ainda predomina em parte do sistema penal, reforçando a ideia de que a prisão é a resposta imediata à criminalidade. Essa mentalidade dificulta a aplicação de medidas alternativas e obscurece o olhar humanizado sobre o réu. Damaris foi tratada como culpada antes mesmo de ser julgada.
A pressão social e midiática também exerce influência sobre decisões judiciais, direta ou indiretamente. A busca por respostas rápidas e punições exemplares pode atropelar garantias legais e comprometer a imparcialidade do julgamento. A justiça não pode se curvar à opinião pública ela deve se guiar pela legalidade e pela ética.
O caso de Damaris nos convida a repensar o papel da escuta qualificada no processo penal. Pessoas vulneráveis precisam ser ouvidas com atenção, respeito e credibilidade. O relato de Damaris sobre o estupro que sofreu foi ignorado e isso contribuiu para sua criminalização.
A responsabilização do Estado por erros judiciais ainda é tímida no Brasil. Mesmo diante de falhas comprovadas, raramente há reparação efetiva. É necessário fortalecer mecanismos de controle, revisão e responsabilização institucional, com foco na prevenção e na justiça restaurativa.
A reparação civil por erro judicial, prevista no art. 5º, inciso LXXV da Constituição Federal, é uma medida essencial para reconhecer o dano causado e oferecer algum tipo de compensação à vítima ou seus familiares. Embora nenhuma indenização seja capaz de restituir a vida de Damaris Kremer, o reconhecimento formal do erro e a responsabilização do Estado representam um passo importante na construção de uma justiça restaurativa. A reparação não é apenas patrimonial ela é simbólica, ética e social.
A história de Damaris não pode ser esquecida. Ela representa milhares de vozes silenciadas por um sistema que, por vezes, falha em proteger quem mais precisa. Seu nome deve ser lembrado como símbolo de resistência, dor e urgência por mudanças estruturais.
Por fim, deixamos um chamado à consciência jurídica e social. O erro judicial não é apenas uma falha técnica, é uma ferida na dignidade humana. Que o caso de Damaris Kremer inspire operadores do Direito, instituições e a sociedade a construir uma justiça mais justa, mais sensível e verdadeiramente comprometida com a vida.


